segunda-feira, 17 de março de 2014

LUCY ALVES, THE VOICE BRASIL E O NORDESTE

Um dos mais naturais sentimentos humanos para com o outro: o sentimento da identificação. Concomitante e diverso a ele, outro: o da negação. Balizamos nosso envolvimento com as pessoas através destas duas impressões que, ao mesmo tempo podem nos aproximar daqueles que consideramos semelhantes, pertencentes ao nosso modo de ver e viver o mundo, mas também podem nos repelir violentamente de todos os que não fazem parte do nosso círculo cultural.
O lugar onde residimos age como fator precípuo para que se organize entre nós uma discursividade identificatória. Gostamos da nossa gente, das nossas tradições, dos nossos valores morais, enfim, daquilo que consideramos natural. Além desse senso de pertencimento a um grupo específico, pomos em prática, cotidianamente, táticas de manutenção para os mencionados itens de identificação coletiva e uma dose, às vezes acentuada, de depreciação valorativa dos elementos que engendram o quadro de comportamentos daqueles que não reconhecemos como iguais.
Recortemos então um espaço. Um espaço que, como analisou Durval Muniz magistralmente em seus estudos de doutoramento, teve uma emergência recente: o Nordeste. Antes de 1910 não existia nas bandas de cá essa região geográfica e acima de tudo simbólica. Ela foi criada por discursos (música, poesia, dança, relatos de heroísmo, etc.) que construíram, expandiram, legitimaram e legitimam até hoje a imagem de um povo que supostamente apresenta características análogas. De lá pra cá, a formação desse espaço trouxe consequências variadas para aqueles que o compõem. 
Esse discurso de validação cultural não parte de um único ponto espacial, mas de todos os pontos espaciais possíveis, desde que dotados de indivíduos identificáveis entre si. Desse modo, o embate entre diferentes grupos que divergem culturalmente se constitui como o resultado natural desse processo de identificação/negação do outro. O Sudeste também teve um começo. Também emergiu culturalmente como um espaço de reconhecimento comunitário, originado manifestações políticas e culturais que enunciam um modo de existir que é singular, que merece ser conservado, exposto e exportado. “A locomotiva do Brasil”, que nunca ouviu essa expressão.
Pois bem, há alguns meses o The Voice Brasil tem me chamado a atenção devido a um fato marcante que está estritamente ligado a introdução deste comentário: a torcida pela paraibana Lucy Alves e sua vitória no programa de TV. Até aí tudo bem, tendo em vista que a mesma possui postura e voz belíssimas, porém as palavras de estímulo exclamadas a ela, falo na grande maioria delas, não foram de encontro às citadas características que a artista apresenta. É mais do que isso. É a vontade vultosa de externar aos outros cantos do Brasil que ela, a cantora paraibana, ou nordestina, tem força, tem gana, pertence um lugar igualmente forte, que a moldou e que a fez superar as adversidades.
Pude comprovar com rapidez essas vontades quando, desde o início do programa televisivo, acompanhei diversos comentários que não deixaram dúvida quanto a fator de merecimento dado a Lucy Alves na sua jornada musical na TV. Não era a sua voz, que por sinal era tida por esses mesmos como inferior a de outros concorrentes, mas era o seu local de nascimentos, a terra de gente boa e acolhedora, de cabra-macho e mulher arretada que deveriam conduzi-la ao pódio da garganta. É um paradoxo claro, mas como já levantei, representa um sentimento natural de identificação.
E essa atividade de desvalorização do outro se expande para fronteiras que vão além do pertencimento a circunvizinhança. Vejamos. Por que não San Alves para campeão? Ele é nordestino, pessoa afeiçoada, canta de forma primordial, etc. Por que ele não recebeu dos nordestinos o mesmo reconhecimento que Lucy Alves? Digo já: pelo fato de estar ele representado em sua arte, ditames estéticos e sonoros referentes a uma parcela de indivíduos não identificáveis aos padrões culturais da maioria do público que o julgou aqui no Nordeste. Ou seja, a analítica é feita a partir de um sentimento que em nada se relaciona com a apreciação do bem cantar.
Os comentários mais interessantes e que de certo modo contribuíram para esse entendimento se consolidar, foram aqueles que de forma explícita ressaltavam a beleza das vozes dos outros concorrentes, incorrendo numa extrema parcialidade na hora de avaliar as performances e que, destacavam indubitavelmente a certeza de que a escolha deveria ser por ela, Lucy Alves. Os mesmos comentários demonstram algo nato do ser humano, a prevalência da emoção em detrimento da racionalização na hora de discernir ou julgar. Esses somos nós.
Quanto ao resultado do programa televisivo, percebemos que mesmo diante do insucesso da candidata paraibana, se é que podemos caracterizar sua exímia passagem pelo programa como insucesso, o sentimento de suporte a sua pessoa, que representa um tipo característico identificável e legitimável, não estancou. Pelo contrário, serviu de amostra para o Brasil, ou melhor, para o restante do Brasil, reconheça que o “povo nordestino” possui senso de organização e elevação da sua moral coletiva. O problema é que os receptores estão propensos ao mesmo sistema de pensamento.

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